“CHARLOTTE
O que aconteceria se uma mulher despertasse uma manhã transformada em
homem? E se a família não fosse o campo de treinamento onde o menino aprende a
mandar e a menina a obedecer? E se houvesse creches? E se o marido participasse
da limpeza e da cozinha? E se a inocência se fizesse dignidade? E se a razão e
a emoção andassem de braços dados? E se os pregadores e os jornais dissessem a
verdade? E se ninguém fosse propriedade de ninguém?
Charlotte Gilman delira. A imprensa norte-americana a ataca, chamando-a
de “mãe desnaturada”, e mais ferozmente a atacam os fantasmas que moram em sua
alma e a mordem por dentro. São eles os temíveis inimigos que Charlotte contém,
quem às vezes conseguem derrubá-la. Mas ela cai e se levanta, e torna a se
lançar pelo caminho. Esta tenaz caminhadora viaja sem descanso pelos Estados
Unidos e, por escrito e por falado vai anunciando, nos começos do século XX, um
mundo ao contrário.” (GALEANO, Eduardo. Mulheres.
Trad. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 122)
Há um tempinho, uma grande amiga
mandou uma mensagem inbox, no Facebook, para mim e outra amiga, perguntando “o
que é essa Marcha das Vadias de que vocês tanto comentam”. Minha outra amiga
encaminhou o link da
Wikipédia sobre a Marcha, para que ela minimamente soubesse do que se
trata. E a resposta dela foi: “nossa, é sério que a gente ainda precisa desse
tipo de movimento? Estou chocada!”
Na hora, só suspirei. Na verdade,
para mim, a Marcha das Vadias tem uma simbologia muito maior do que a sua
própria luta: significa me incluir num movimento em que realmente acredito,
especialmente por sua forma de construção: coletiva, horizontal, democrática,
que toma corpo a cada ano. Na Marcha de 2012, em Brasília, tivemos cerca de 4
mil pessoas lutando por igualdade de gênero, pelo fim da violência contra a
mulher, pela construção de uma sociedade inclusiva. E, sim, a gente PRECISA de
movimentos como este. Na verdade, em tempo de neoconservadorismos, acho que
nunca precisamos tanto de vozes nas ruas para defender direitos e garantias
fundamentais.
Marcha das Vadias em Brasília (26/05/2012) Foto do álbum da Marcha das Vadias DF |
A defesa pela igualdade de gênero
ganha contornos cada vez mais complexos: a ideia do senso comum é de que as
mulheres “já ganharam igualdade de direitos”, pois votam tais como os homens,
trabalham e estudam como os homens, têm liberdade para se separar de seus
maridos e, hoje, temos até uma Presidenta do Brasil. Seria o melhor dos mundos,
não?
Infelizmente, não. Mulheres ganharam
o direito a voto, plenamente, em 1934,
e até hoje não temos representatividade
suficiente em cargos políticos ou em instrumentos
de participação social. Em relação à
(des)igualdade
de salários e de condições de trabalho, a luta ainda é muito grande: em recente
estudo do IPEA, notam-se distinções de gênero no uso do tempo destinado ao
trabalho doméstico por mulheres e homens. Os crescentes casos de violência
contra a mulher fizeram com que o próprio Supremo Tribunal Federal alterasse a
modalidade de ação penal cabível para o caso de lesões corporais praticadas no
âmbito da violência doméstica e geram compromissos
do Poder Executivo para a diminuição destas ocorrências.
É curioso como debates que
envolvem gênero, lutas por reconhecimento, estratégias de mobilização às vezes
despertam opiniões tão diversas; há quem entenda que já vivemos em uma
sociedade “moderna demais”, e por isso as mulheres e os homens comprometidos
com a igualdade de gênero devem criar outras formas de luta (como a advovacy feminista, a participação como amicus curiae em processos em trâmite no
Supremo Tribunal Federal), que não a ocupação das ruas. Mas o sentimento de ocupá-la,
de gritar pela igualdade, talvez tenha uma função muito maior de empoderamento do que de transformação
social. Sair da posição de vítima silenciosa para a “vadia barulhenta”; tomar
seu lugar no mundo, nas ruas, na sociedade. Muita gente pergunta: “vocês saíram
da Marcha, voltaram para as suas casas, e quem apanha continua apanhando”. Sim,
infelizmente, serão necessárias muitas e muitas marchas, lutas, conquistas
legislativas e políticas públicas para a alteração dessa realidade. Seguimos
lutando por um mundo ao contrário de verdade.